domingo, 1 de abril de 2012

O cravo vermelho











Dizem que as flores têm o poder de mudar destinos. Unem corações, esfriam relações ou alteram de maneira revolucionária os sensíveis mapas do amor. Não acreditava no poder mágico das flores até que um dia tive a rebeldia sacudida pela dúvida. Vamos à estranha e mirabolante história que me deu a sensação de haver dela participado tal o interesse que me despertou.

A novela, atingiu-me no cérebro, exatamente onde mora a senhora dona crença.

Ao recordar-me das acontecências, volto ao quartel das informações para recompor a cena:

À porta da residência do consagrado causídico doutor Príamo Pereira Pinto, estaciona um carro de luxo e dele salta uma mulher trintona, esbelta, linda e dona de uma pinta pretinha debaixo dos olhos. Toca a campainha e antes de lhe franquear a entrada o homem da guarita deseja saber de quem se trata. À pergunta a bela mulher responde com outra:

—É aqui a residência do doutor Príamo?

—Exatamente.

—Poderia vê-lo?

—Não, madame, o patrão está no trabalho. No escritório com toda a certeza.

—Está bem, está bem. Se não o encontro, o meu recado o encontrará.

A sedutora mulher sobraçava um invólucro de celofane e dentro dele, um chamativo cravo vermelho.

—O senhor faça-lhe a entrega quando chegar, com as palavras que eu lhe peço repetir: este é um brinde perfumado da mulher da vida dele.

—Como é o nome da madame?

—Ele saberá pela flor e pelo recado. Obrigado, senhor.

O porteiro Malaquias viu o carro partir em disparada. Estava zonzo. Não sabia se era pela beleza da mulher, pela flor ou pelo discurso que se comprometeu repetir. Pelo sim ou pelo não o certo seria dar ciência do ocorrido à mulher do doutor Príamo. O que acabava de acontecer poderia ser uma brincadeira de mau gosto e ninguém melhor do que dona Serenilda, a patroa, para guardar o recado. E foi o que ele fez.

A mulher do advogado assustou-se,- e muito, - mas só por dentro, pois, por fora, foi fiel ao nome. Sereníssima ouviu o blá-blá-blá do porteiro, recebeu carinhosamente o cravo vermelho e foi à forra...

Minutos depois autorizava a entrada de um táxi na mansão e o motorista recebia instruções:

—O senhor irá ao endereço que estou lhe passando e procurará o doutor Príamo Pereira Pinto. Vai lhe entregar esta flor com um recado verbal. O senhor dirá: este brinde perfumado é enviado pela mulher da vida dele. E nem mais uma palavra, está bem?

E enfatizou:

—Nem uma só palavra. Nem de quem e nem onde a flor lhe foi entregue.

Com a mesma pressa que chegou, saiu. Rumou para o escritório do doutor Príamo conversando com os seus botões: que mulher admirável essa, meu Deus! O marido no trabalho e ela se lembra dele. Faz um mensageiro especial e lhe manda uma flor. Que mulher extraordinária! Um exemplo...

E não houve demora no trajeto e nem o motorista esperou muito para ser recebido. A secretária do destinatário, no princípio pensou fosse um mimo para ela. Depois caiu em si e se dirigiu ao chefe:

—Doutor Príamo. Está ai fora um homem com uma flor para presentear-lhe. O senhor o recebe?

—Claro. Por que não?

O advogado era um homem que exibia seriedade, sisudez, e em razão disso era natural aparentasse curiosidade ou estupefação.

O motorista emocionado e com voz modulando romantismo entregou o cravo vermelho, deu o recado como se recitasse um “script”, despediu-se e quando saía o jurisconsulto barrou-lhe os passos:

—O senhor não sairá daqui sem me contar essa história todinha. Desejo ampla informação: qual foi a mulher que me mandou o presente?

O motorista sentiu-se acuado. Tergiversou. Gaguejou, relutou, mas acabou por entregar os pontos. Contou que a flor lhe fora enviada por uma distinta senhora moradora à rua das Begônias, 31, esquina com a rua das Amendoeiras. Posso ir agora?

O doutor Príamo despediu-se do emissário, mas não sem antes molhar-lhe as mãos com uma cédula novinha, novinha...

Estava feliz, feliz demais.

À noite o advogado voltou para a tranqüilidade do lar. Esperava-o, sem dúvida, a mais perfeita de todas as companheiras. Era essa a definição, que lhe adoçava o pensamento. Ao passar pela joalheria Dryzun, respondeu generosamente ao recado falado com uma cintilante pulseira de brilhantes.

Ao entrar radiante em casa foi logo perguntando em alta voz:

—Onde está o grande amor da minha vida?

E de lá de dentro uma resposta sublinhada pela raiva e pelo ódio:

—No quarto. Arrumando as malas para sair de sua vida... Definitivamente, entendeu bem?

E não houve argumento que demovesse a sereníssima Serenilda.

Ela saiu na mesma hora de casa, hospedou-se no Hotel Fasano, onde proibiu lhe passassem telefonemas. Visitas só do advogado que lhe prepararia o divórcio. Uma semana depois estava no Hassler, em Roma e em seguida adquiriu residência nobre na Corte D’Azur. Com o Mediterrâneo lavando-lhe as pupilas e o champanhe ensopando-lhe os pensamentos enfartados de planos dionisíacos. Bendito cravo vermelho, bendita conta na Suíça que o marido colocara, havia tempo, em seu nome.

Enquanto a vingança da mulher era diluída em noitadas regadas a finos licores, o doutor Príamo, triste e desorientado, andava de Herodes a Pilatos em busca do responsável pela criminosa urdidura ou pelos motivos de tão impiedoso equivoco. E nada. Usou o seu grande prestigio junto aos escalões da Polícia, mas as investigações não prosperaram.

Por fim, sem saber o rumo da sua adorada Serenilda, enfrentou o advogado dela, assinou o divórcio. Deliberou mudar de rumos definitivamente. Embarcaria para a Europa e de lá haveria de viver dias venturosos ainda prometidos pelo seu vigor etário. Recursos lhe sobravam com fartura. A conta na Suíça em nome de Serenilda jamais foi questionada e nem poderia sê-lo. E nem fez falta.

Agora era ele que estava com o pé no Velho Mundo, ali em Guarulhos, aguardando embarque, quando ouviu o seu nome pronunciado cristalinamente pelo autofalante:

—Doutor Príamo, favor comparecer ao balcão da Alitalia.

Aturdido, correu para o balcão da Alitalia:

—Chamaram aqui o doutor Príamo?

—Chamamos, senhor. Ele já está sendo atendido aqui ao lado.

A mocinha apontou para um belo casal e comentou:

—Acabaram de se casar. Saíram da Igreja para o Aeroporto...

O advogado aproximou-se dos dois pombos e pode assistir perplexo a uma inesperada cena de amor que lhe apunhalou o centro do coração. A moça madura, com uma pinta enfeitando-lhe o rosto, beijava apaixonadamente o companheiro.

Quando terminou, proferiu docemente um discurso de amor para quem quisesse ouvir:

—Agora lhe dou um brinde perfumado com a significação de que serei sua por toda a vida. E lhe entregou um lindo cravo vermelho...

O jurisconsulto durante toda a viagem procurava esconder as insistentes lágrimas de dor. Mundo estranho, pensou. Muitos Príamos, muitos cravos, mas Serenilda só uma...

E foi quando sentiu desabar sobre ele a desdita inapelavelmente. Estava nos jornais a notícia vinda de Roma: um casamento chiquérrimo pegara de surpresa a nobreza italiana. O exuberante Conde de Via Ápia discretamente se casara com uma brasileira sangue azul, da linhagem dos Bragança. Tratava-se de Serenilda Alcântara ‘Passos’. Ela, da casa dos Passos, e ele muito louvado pela fortuna acumulada e aplaudido por um hobby: era um dedicado plantador de cravos. Cravos vermelhos. E perfumados.

Olavo Drummond

Nenhum comentário:

Postar um comentário